terça-feira, 28 de agosto de 2012

O Optometrista Humilde e o Oftalmologista Deprimido


Vamos começar humildemente pelo início. A humildade é uma arma iniciática de razão disfarçada por natureza pragmática, ela própria promove a menor prática da razão por motivos de insegurança. A realidade da humildade é que indica a existência de nenhuma, uma pequena partida de foro semântico. Olhando para o monstro imenso nomeado de opinião pessoal, de novo por motivos de humildade extrema, pensa-se tudo e diz-se tudo como uma verdade pessoal, mas as verdades pessoais servem apenas para percebermos todas as intrincadas encrencas pessoais. A virtude do pensamento encontra-se na confrontação constante com o externo e o contraditório. Se o pensamento decorre destes princípios as ideias aplicam-se a mais que um mero efeito pessoal. Fluídas e momentâneas de natureza, elas confrontam-se e não se sobrepõem. A não sobreposição do ideário é a melhor forma de construir teorias aplicáveis ao mundo. Assim se constroem argumentárias, a humildade e a opinião pessoal são absolutamente nulas para o valor que elas representam. Se a ideia não foi percebida entenda-se apenas o que se segue.


Não conheço muitos humildes entre pessoas que admiro, e mesmo entre os que não admiro menos haverá do que antes, talvez por a tendência passageira, que apelidamos de moda, ser cíclica. Mesmo assim confronto-me com a ideia de que os humildes ficam sempre aquém da sua humildade, por assim dizer, são menos ainda do que aquilo que na sua humildade dizem ser como pessoas. Se já a humildade lhes ficava mal, este facto deixa-os pior ainda. Não há maneira melhor de entender a nivelação pessoal de cada um do que o confronto constante, mas vai daí e a humildade confunde tudo. O que ela faz é que se experimente o confronto de maneira diferente. No nosso ser humilde podemos ser inferiores no confronto, mas isso é apenas no nosso ser humilde, mas como somos humildes não comparamos o nosso próprio eu pensado que sabemos que existe para além da humildade. Fica sempre uma réstia de superioridade nunca testada. Ou isto, ou ficamos extremamente envergonhados de fazer seja o que for por complexo de inferioridade. Entre a falta de confiança e o que a humildade nos deixa produzir o resultado é quase idêntico, menos pela última que produz tanto ruído que toda a gente confunde. Sempre será assim que começa, a confusão, o conceito de igualdade espalhado para a arte, o conceito dos gostos que já tanto rebati. Será assim que o mundo se deixa ir, pensando que é normal e deve ser promovido, até pela diversidade, que a grande maioria das pessoas goste mais de artistas que nada percebem do meio. As maiores estrelas da música são o que se chama um nulo compositor, de música não percebem, do que cantam pouco mais ou menos, do que dançam ainda vá lá. E isto é normal, porquê adorar alguém que consegue pegar num piano e fazer música instantânea compondo a cada som, fazendo que cada nota seja algo fresco e imprevisível, dominando a música como quem faz com que todas as partículas que existem formem um ser? É verdade que o Keith Jarrett não tem as pernas da Beyoncé, mas lá estão as pessoas a confundir pornografia com música, tal como o fazem nos filmes em que toda a gente parece uma reprodução das antigas esculturas gregas. Há quem se indigne e julgue e critique o que acontece em todo este mundo de estrelas sem nunca ter ouvido um milímetro de música que fosse feita sem pensar em rios e em dinheiro, mais especificamente os rios constituídos pelo último. Falando assim de música e de tudo o resto. E de confusão de conceitos estamos falados, partimos do que nos faz masturbar mais e do que nos faz pensar menos e não há importância, porque a igualdade faz com que não haja diferenças de importância entre nós. Se não acham que é verdade olhem para quem nos governa, para quem vende mais livros, para quem vende mais música, para quem vende mais bilhetes de cinema, e acima de tudo, para as pessoas que têm mais influência e poder, que serão normalmente as mesmas, a igualdade é uma arma espetacular para quem reside na maioria (até na publicidade se percebe, quando se publicita um produto como sendo bom é porque é o produto que a maioria prefere). Fico apenas triste por a maioria achar que as minorias são apenas raciais ou religiosas ou de sexualidade diferente.


Para o fim da humildade como uma arma basta acabar com a hipocrisia de fundo do ser humano. Mas retirando impossibilidades teóricas, a ideia principal é que para se fazer algo com relevância e critério (e não se esqueçam que critério também quer dizer critério de qualidade, se falam de best-sellers e blockbusters e dedicam o vosso tempo a eles e a compará-los parem a vão ajudar pobres a comer sopa ou qualquer coisa do estilo que importe mais, porque enganados vocês já estão, pelas próprias pessoas que fazem os best-sellers e os blockbusters) é preciso estar ciente de todas as nossas capacidades e de tudo aquilo que ainda precisamos de absorver. A humildade em nada ajuda, a confiança no que temos é essencial e aproveitar cada uma das nossas características ao máximo exige trabalho, muito mais do que aquele que custa convencermo-nos de que já possuímos algo de bom. A tarefa até se torna complicada, mas custa-me ver que por tanto idiota no mundo a censurar cada coisa que sai um pouco da caixa haja tanto talento desperdiçado. E talento desperdiçado é algo imperdoável, tanto para as pessoas que o censuram como para as pessoas que não o usam.


Acabando um pouco mais próximos do que muita gente faz e pensa e escreve, passemos a Lars von Trier. A um homem que ainda não vi fazer um filme mau, a um homem que ainda não caiu no cliché e tenta fazer tudo ao contrário. Se este homem fosse humilde nunca tinha feito o que fez, um pouco como Matthew Shipp (que continua a quebrar as regras da música a cada álbum que faz ou em que colabora, como o fantástico Optometry que gravou com DJ Spooky e que estou a ouvir neste momento de escrita), ou como Pissarro (que soube reconhecer que não conseguia ser um neo-impressionista), ou como Alexander Soljenítsine (que estava plenamente convencido deque ninguém o ia ler durante a sua vida e que estranhamente conseguiu com que quase ninguém gostasse dele). E agora vejo um mundo que o ignora por razões variadas que se resumem normalmente a nenhuma ou, explicando melhor, resumem-se à procura de defeitos que se fosse feita a mais qualquer outro filme o destruiria por completo. Ou, então, ainda acabam por dizer que não gostam por um motivo que nada tem a haver com qualquer critério ou estilo, apenas por algo que os faz sentir desconfortáveis quando se sentam e veem. Quando se fala de um filme de terror, ou horror, ainda há uma sensação de reconforto, há regras, as mortes são pautadas e no fim há um princípio moral. Agora quem nos leva ao total apocalipse de ideias onde já nada parece válido, onde tudo se esfuma e nada mais aparece que o completo abandono de tudo o que nos parecia existir como ideal, parece demasiado para se apreciar. Mas nisto se baseia a arte, toda ela, na transmissão de sensações que as palavras pouco chegam para fazer perceber, na imagem sensorial que permite tudo ver, um pouco como a narrativa sensível. Conceitos novos, que aparecem sem palavras ou imagens, destruidores de dogmas, que fazendo jus à verdade criam novos dogmas mas quase sempre melhor que os anteriores. Se a mulher corta o clitóris ou não pouco importa, as necessidades da humanidade não provêm da folia e da exacerbação do normal, evoluímos tanto que agora possuímos uma maneira diferente de evoluir, as nossas necessidades são ideias. As ideias estão por todo o lado, para quem as quer ver e ter, critiquem a falta delas, ou o facto de toda a gente andar aos pulos com um filme sobre morcegos para adolescentes, não se atrevam a deitar ideias fora só porque vos custa que elas existam.


quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Cinema fora de tom


Este mundo soa estranho, a sons aproximadamente idênticos aos que se ouvem no interior do intestino de uma águia careca. Ou algo semelhante no simbolismo da ideia. A liberdade aproveitou-a a humanidade para iniciar o ataque aos que a quiseram. Se não tens censura, tens limitação. Passas do lápis azul à crítica em forma de vernáculo social e assim ficas, o que existe é o que a maioria quer. E o mais espetacular e impressionante é que o que a maioria quer não faz sentido absolutamente nenhum. Podia-se pensar que seria um fenómeno de casualidade provocado por um movimento de massas, que provoca que os gostos comuns não tenham que ser simultâneos em cada um, fazendo com que cada vontade seja coerente individualmente. Mas em reflexão mais próxima, percebemos que a influência que a coletividade causa em cada um provoca a incoerência de cada elemento influenciado. E a questão que resta será a de qual o movimento de massas que iniciou toda este espetacular bolo muito mal cozido. Obviamente não há nenhum movimento iniciático, existem apenas referências, as pessoas apanham-nas de onde podem e percebem-nas como suas e pessoais quando as absorvem, a partir desse momento constituem o seu gosto. As mudanças que tornaram a cultura de cada país numa cultura global levam-nos a perceber o último movimento moderno. Antes da revolução dos meios de comunicação, os únicos processos possíveis de passagem de informação e divulgação existentes eram as palavras ditas e as escritas em papel, será fácil perceber que estas referências eram controladas pelas pessoas que nos envolviam socialmente e pelas pessoas que nos ensinavam (duas entidades necessariamente diferentes). Creio não cometer um grave erro sociológico quando penso que estas referências, assim formuladas, quando dadas pela envolvência eram mínimas e vistas como comuns, e quando dadas por alguém que nos ensinava, como algo pouco comum e digno de esforço para tentar compreender. Neste momento, a maior parte destes dois meios foi substituído por publicidade, quase única e exclusivamente. Poderíamos pensar que as pessoas continuariam a ser a maior influência, mas isso só acontece porque estão expostos à mesma publicidade. Dentro de uma comunidade ainda será maior a coincidência desta exposição. Depois disto tudo dito vem a importância que isto tem para o mundo. E esta é óbvia, em vez de uma construção vertical daquilo que nós percebemos do mundo, onde existe uma espécie de escala em função da qual era definido o comportamento em relação a cada uma das referências, existe uma construção horizontal, onde tudo é igual, tudo vem do mesmo sítio. A nossa memória assim o impõe, porque sendo a sua modalidade associativa a maior responsável pelo tipo de sentimento provocado em cada um por cada objeto visionado, a exposição de tudo no mesmo meio e da mesma maneira provoca a que nada se imponha sobre o resto. Causando uma óbvia confusão de conceitos em todas as faixas etárias. E a partir dela já os adultos gostam de filmes de adolescentes, já os adolescentes gostam de filmes de crianças, já a música deixa de ser notas em sequência e se torna numa sequência imensamente repetida de um ritmo qualquer, já a originalidade conta tanto como a cópia, já o racismo é intolerado e já a intolerância se expande a tudo o resto da mesma maneira (expandindo uma ideia que se pensa evidente e impondo-a sobre os outros), já a leitura se considera um ato igual ao de ver televisão (e que tem, portanto, de provocar o mesmo efeito), já a fotografia é um avistamento de pessoas em lugares e não de lugares vistos de uma perspetiva nova e aqui já me perdi um pouco.


Será o paradoxo das vontades e a confusão tão simples como observar uma pessoa que chega a casa após um dia extenuante de trabalho, infinitamente repetido, odiando cada minuto da tarefa eliticamente elaborada. Senta-se no seu sofá e sente a necessidade de descontrair e a melhor ideia que lhe surge é ligar a televisão e ver a sua série. E qual não é o espanto do observador que assim vê este homem descontrair da repetição com mais um pouco de repetição. Esta é certamente a escolha mais óbvia, mesmo que condicionada pela falta de escolha, afinal de contas só podemos escolher daquilo que nos é conhecido. Se não conhecemos mais nada assim ficamos, espantados e rendidos ao que a publicidade nos fornece. Afinal é nisto que se baseia a série, pegar em algo que funciona e fazê-lo uma e outra vez, não mudar quase nada, apenas reescrever o que já foi escrito, fazendo uma espécie de cópia cega. Poderia ser estranho não fosse esta a óbvia consequência de se perceber que se um filme resulta e tem muita audiência, voltar a fazer um parecido, com os mesmos atores, vai resultar igualmente bem ou ainda melhor. Não fosse assim e a Marylin Monroe não tinha carreira. Mas porquê esta tamanha resistência a algo inovador e diferente? Porquê repetir algo até à exaustão? Fosse este um fenómeno apenas português e atribui-lo-ia à saudade, assim será uma nostalgia aparente que se baseia em repetir a facilidade. Mas aqui é que volta a soar estranha a música. Então se o homem se queixa de que o trabalho não o deixa aproveitar a vida, se insiste tanto para ter férias e se repudia o seu trabalho (com tal intensidade que por vezes nem o faz bem apenas por pura maldade ou por achar que o mundo lhe deve algo), chega a casa e aproveita para fazer mais um pouco de absolutamente nada? Trabalha infindavelmente mal para ter uns minutos de descanso e insiste, nesse momento, em aproveitar a vida que tanto reclama, fazendo exatamente aquilo que tanto repudia no seu trabalho, desperdiçar mais um pouco de existência. Mas isso são idiossincrasias minhas, pensar que se existimos para andar de um lado para o outro realizando tarefas menores para depois podermos comer, dormir e aproveitar para fazer tão magnânimas tarefas mais valia sermos macacos. Mas além de toda a estranheza provocada em mim vamos à ideia em si (provocada). Se a ideia inicial poderia ser produzir algo de maior duração que um filme, em que os cenários e atores se podiam repetir, baixando custos de produção, com o objetivo de desenvolver um pouco mais histórias, adicionando profundidade às personagens (fazendo isto, que tanto custa numa longa metragem, facilmente). No fim, resultou em histórias em loop, com personagens artificiais e sem identidade (que pareceria o mais difícil de fazer). Não é frequente, e costuma ser quase impossível, encontrar um série que esteja razoavelmente bem feita. Isto reduz-se para aproximadamente zero quando se procura uma série de longa duração, ou que tenham mais de doze episódios e mesmo doze já será excessivo. Isto vem pela impossibilidade teórica de explorar uma série por muito mais tempo sem recorrer a repetições e provocando muitas vezes inconsistências. E se procurarmos séries que o façam bem para além disso encontramos apenas aquelas que contornaram esta regra. Para isso Black Adder renovou a sua história para outro período histórico a cada ciclo de seis, Flying Circus fazia-o porque eram apenas sketches e não uma série concreta em si. E no início era apenas isto que acontecia, a ideia de que uma série não podia durar muito tempo, era importante renovar e inovar. E tão de repente como isto se percebeu, que seria necessário pouca quantidade para fazer uma série de qualidade, percebeu-se também que para fazer o mesmo lucro ou ainda maior bastaria repetir a mesma coisa infinitamente, até mudando, por vezes, completamente as personagens, não de ator, mas de carácter. Fazendo até com que as leis das probabilidades se reduzam a nada e tudo aconteça a cada uma delas, até coisas consideradas impossíveis. Um personagem apanha cancro, outro é assaltado, uma personagem é raptada e quase violada, outra ganha a lotaria e perde o tiquê, um mete-se com a máfia e sai-se mal e mais alguém no meio disto descobre que só conhece pessoas bonitas e desiste do sonho de ser modelo, entretanto aparece uma amiga que também é modelo e decidem que conseguem fazer tudo, então apanham cancro, são assaltadas, raptadas e violadas e ganham a lotaria, mas sem perder o tiquê porque foram mesmo violadas. Entretanto aparece um médico, um advogado e um polícia de óculos de sol e já está a magia lançada para cinquenta horas de televisão. Percebe-se facilmente que terá de haver sempre uma renovação, artificial ou total. Que há uma incongruência entre o início e o fim, não só em personagens que são substituídas ou parecem radicalmente mudadas sem razão aparente mas até na própria forma como a série é filmada ou em como o argumento é escrito. Assim nos apercebemos que quando antes as personagens eram estanques e a ação apenas se desenvolvia à volta delas, percebemos agora que tudo se baseia nelas e descobrimos uma nova telenovela disfarçada. E a sequência é quase sempre esta, com médicos mancos ou sem eles, com naves espaciais no pós-apocalipse, advogados simpatizantes do capitão Kirk e polícias que seriam milionários se patenteassem metade da tecnologia que têm. Mesmo as grandes séries de humor observacional dos Estados Unidos, que começaram com Seinfeld, continuaram com Curb Your Enthusiasm e continuam agora no seu expoente máximo com Louie, parece que se gastam com tal rapidez que cedo têm de repetir temáticas e gags disfarçadamente para parecer algo de novo.


Entretanto também parece que os realizadores de cinema, nos seus grandes assentos de cetim se apercebem de alguma desta magia e decidem que também deviam fazer algo que tivesse sempre traços semelhantes, algo que mostrasse às pessoas que este produto é parecido a um que já muito gostaram (e conseguir utilizar a palavra produto aqui, tão bem, quase parece crime), chamando-lhe a sua “assinatura pessoal”. E se antes isto significava identificar um tipo de abordagem, hoje transformou-se em algo parecido a repetir atores, repetir tipos de plano, repetir piadas e sequências e até repetir as próprias histórias. E não é que parece que, como nas séries de televisão, cada vez que chegamos a um episódio novo acabamos por ficar cada vez pior. E eu que era tão entusiasta do Seu Jorge a fazer versões acústicas de David Bowie. E de tão inóspita expedição aparece de novo Wes Anderson com um filme em que o inacreditável se converte apenas em ridículo e em que o mundo se torna subtilmente muito parecido a histórias de encantar. E de um filme sobre crianças aparece algo criado por crianças e eu até diria para crianças se elas não fossem dotadas de inteligência. O ridículo aparece apenas pela tentativa de renovar a fórmula, realizar sequências e montar os cenários de maneira semelhante, e forçar isso numa história que nada mostra de interessante, passando pelo banal e acabando no forçado. De todas as vezes que alguma coisa é feita de novo, a ideia iniciática esmorece, os efeitos desaparecem, porque o conceito já não está lá, só a lembrança dele e as artífices maneiras de o disfarçar. E de mais pouca imaginação se precisa de ter para perceber o porquê de Lynne Ramsey ver pessoas a fazer fila para sair a meio do seu filme e este homem apenas ver pessoas a rir desbragadamente de humor que não exige muito da originalidade. Já dizia o Zeca Afonso “e quando o pão sabe a merda” etecetera e tal.


domingo, 24 de junho de 2012

Negação, Raiva, Negociação, Depressão e Aceitação


Contrariando a vontade que é a de falar de absolutamente nada, queria renegar a existência cultural de alguém que se digne a divagar e debater sobre essas novas modas que são os filmes de conluio entre essas bestas assassinas imortais pintadas de todas as cores, com deuses nórdicos e homens verdes de raiva. Mais do que isto, é debater as diferenças entre estes filmes e os tão em voga do “Batman”. Sobre este último não há muito a dizer, de algo bem feito não se faz algo relevante. A forma não se sobrepõe ao conteúdo por muito adornado que este esteja. Ainda mais do que isto é pensar que entre o argumento de “Os Vingadores” e a novela de sábado à tarde vão só umas piadas mais trabalhadas, mas igualmente desconcertantes por falta de originalidade. Juntamos isso e uns pontapés que custam milhões a fazer e toda a gente vai ver. E vai daí, eu pensava que como estes homens já fazem isto há tantos anos, já tinham refinado a técnica. Qual é o meu espanto ao ver que, mesmo escrevendo o mesmo argumento durante tanto anos, uma e outra vez, este continua cheio de inconsistências e falhas que só fazem sentido se pensarmos que eles andam a fazer de nós burros. Não só para mim, que parto do princípio de não me quererem satisfazer a alma, mas a todos os que gostam e até adoram estas personagens e deliram com frases feitas e lutas espaciais. Como dizia no início, debater o que resultou ou não nestes filmes, fazer comparações entre eles, é um trabalho muito coincidente com o de fazer uma antologia de Marco Paulo e comparar o seu trabalho mais antigo ao moderno, se bem que, em verdade, ele neste momento faz odes ao Danacol.

Mais do que isto ainda, sinto-me estarrecido pelo que Scorsese anda a fazer. Vai, não vai, encontro pessoas a dizer o quão genial é a rodagem do filme e como ele caracteriza de uma maneira tão especial os primórdios do cinema. Não é ciência aeroespacial, sendo “Hugo” (não me importa se “Cabret” ou não) o filme que é, passando-lhe toda a redundância por cima, continua a ser, um zero tão absoluto no cinema que eu até tinha achado mais piada se ele tivesse posto um ecrã preto durante hora e meia e dissesse que estava a tentar recriar o fim do universo, que seria um zero bem mais interessante. Mais do que isso, é a noção do zero absoluto, que se lhe enquadra perfeitamente, já que passa pelo conceito de que nenhuma partícula se moveria sobre tais condições. O extraordinário é que isto é supostamente impossível, mas este homem consegue fazê-lo.

Passo a explicar minuciosamente que sem argumento não há contestação possível. O rapaz órfão que é muito humilde e espetacular e que passou por todas as dificuldades do mundo, a miúda que o vai ajudar a fazer o que ele tem de fazer, o velho rezingão que afinal se vai transformar uma pessoa bondosa e a personagem de alívio cómico mais abominável que eu já vislumbrei. Nenhum destes personagens consegue ser mais do que o lugar comum de um lugar comum. Mais do que isso, Scorsese nem sequer conseguiu ou quis disfarçar isso. Mais um pouco e até digo que o senhor Sacha Baron Cohen dá um papel deplorável sobre um personagem que se assemelha a um preconceito mal construído por piadas baratas e humor físico de um nível que se esperaria do teatro de revista português. Passando à história, que depois de visto o filme desejei que fosse mais um “Oliver Twist” com o Méliès metido à conversa, esta extrai-se de uma maneira muito hollywoodesca de um livro, que deve ter em comum com o filme o que o Demolition Man teve com o “Admirável Mundo Novo” do Aldous Huxley. Mais valia terem deixado o homem em paz na sua cova em vez de o obrigarem a contorcer-se cada vez que o Stallone entorta a boca e deixá-lo por creditar, pois não creio que alguém conseguisse visualizar semelhanças entre o livro e o filme a não ser um dos nomes que por lá é dado. Esta obra de Scorsese torna-se tão rebatida e extraordinariamente pouco esforçada em atingir originalidade que estou em vias de a classificar como remake universal, e com muita má consideração pelos seus predecessores, de todas as histórias sobre órfãos e meninos em desgraça que atingem e sonham com o sucesso que já houve por aí. 

E agora entramos no extraordinário mundo novo das rodagens elaboradas também fazerem de um filme cinema. Que mentira mais alta que esta se levante. Atingir efeitos especiais alucinantes ou conseguir fazer com que os cenários voem e façam piruetas, não faz mais por um filme do que adicionar preguiça ao imaginário de diretores e espectadores que por abnegação da história do passado já não querem outra coisa. Mas no mais recente filme de Scorsese nem sequer é isto que acontece, ele fez um filme em 3D com a ideia fixa de o usar com todo o seu potencial, e no final, com o que ficamos são meia dúzia de imagens de ponteiros de relógio do tamanho da torre Eiffel e a própria torre, que também não está muito favorecida. Mais que isso, usou um shot contínuo na última cena, que mais não fez do que acabar uma história muito medíocre com uma espetacular demonstração de que se as personagens não têm profundidade, se a história não é trabalhada e se os atores não são por aí além integrados na personagem, não há imagem que valha ou milhões que cubram. É como se estivesse apenas a pensar como poderia fazer a primeira coisa que lhe passou pela cabeça, sem passar mais tempo a pensar como poderia fazê-la melhor. Passando ainda mais pela ideia de que Einsenstein consegue extrair mais significado e mais interpretação de cada imagem do “Battleship Potemkin” do que este homem numa cena inteira, e o Einsentein ainda trabalhava com máquinas que não tinham muita vontade de se mover, pelo menos de forma tão ágil e sem qualquer tipo de efeito especial. 


Chegamos ao fim e encontramos a cena final do “Transformers 3”. E a partir daqui não há mais nada que se possa fazer ou dizer. Apenas um homem com milhões e milhões de dólares para montar um filme com robôs gigantes que lutam e dizem frases feitas enquanto o mau muito mau é eletrocutado. E o brilhante herói robô ainda diz de tão magnânima maneira, já sem o braço esquerdo, como o próprio deus, “eu não te traí, tu traíste-te a ti mesmo”. Tentem, se for possível, encontrar algo neste filme que não tenha sido já visto em mais dez ou vinte filmes que já eram maus por si. Tentem, também, explicar-me o porquê de havendo milhões e milhões de dólares para fazer coisas espetaculares, como filmes mais ou menos bons ou tirar a fome a meninos de áfrica que só comem moscas, dão que seja meio tostão a este homem para fazer seja o que for, nem que seja respirar. 

Se o mundo é este, se a esperança é esta, que se dane a cultura e a bonomia e a capacidade racional do ser humano. Que se danem todos os que conseguem fazer. Vamos todos gostar dos “Tranformers” e aceitar que o Scorsese é que percebe disto, afinal ele até é conceituado, ou pelo menos parece.

domingo, 13 de maio de 2012

A Morte da 7ª Arte (Variação Impossível)


Esta foi a última Morte escrita.

Buena Vista Social Club

Para começar seria necessário dizer que numa época conturbada como esta, em que se percebe que a humanidade brinca com a democracia e co-existe num domínio financeiro de não-eleitos que já dominam o poder legislativo, pretendo desejar um bem-haja a todos os que pagam um bilhete de cinema para perpetuar um sistema onde o dinheiro se sobrepõe à cultura e não nos permite ser um pouco como o sonho Islandês. Um mundo onde as chapadas de um cientologista ressoam mais que a música etérea dos Sigur Rós não merece mais do que aquilo que já tem. Por isso peço a todos os que se insurgem que percebam que a causa não está no sítio onde uma pessoa vive e não consegue dinheiro para ter uma casa em condições, mas sim no sistema que permite que a sua vida seja uma inutilidade ignorante. O Rubén González e o Ibrahim Ferrer viveram a maior parte da sua vida na miséria e não deixaram de ser aquilo que eram, ninguém lhes pode tirar a música que fizeram, ninguém lhes pode tirar a obra que os perpetuou.


Quando me leio, parece que estou sempre a tentar explicar a mesma coisa, mas acho que a minha mensagem ainda não passou. Vou, por isso, tentar levar-vos por outro caminho e peço-vos só que pensem um pouco nisto: se juntarem um monte de fotografias do Man Ray e as puserem a passar num ecrã durante uma hora e meia no silêncio total, essa hora e meia terá muito mais valor do que quase todo o cinema atual. O que é que nisto é menos ou mais relevante do que qualquer crise financeira? E que custo teve? Virtualmente ínfimo e ao alcance de quase qualquer um.

O argumento de que qualquer tipo de arte tem de ser sustentado, e que isso só pode ser feito pelo dinheiro das massas é completamente irrealista. Em primeiro lugar é um insulto às massas, um insulto perfeitamente aceite, já que aceitam ver qualquer porcaria que tenha sido feita para lhes retirar dinheiro a troco de estupidificação. Em segundo é uma mentira, porque o dinheiro ganho com isto nunca sustentou nada a não ser os bolsos cheios de poucos e ainda mais estupidificação de muitos.

Já se sabe que o cinema independente se chama independente por isso mesmo. E não confundam, não quero dizer que este cinema independente não crie das peças mais pretensiosas e vazias de conteúdo que possam ser visionáveis, mas isso há-as em todo o lado. Basta um pouco de ego e sai por aí um Somewhere. Mas uma coisa é fazer-se algo que pretende ser relevante, julgar se o é ou não cabe a quem se achar de competência para tal, mas fazer algo propositadamente mau para ganhar dinheiro é de certa maneira um crime apenas não punível por lei porque as pessoas se deixam roubar (de ideias e de dinheiro).

07

A única diferença entre o Madoff e o Spielberg é que o que o Spielberg fez não o levou à prisão. E vocês poderão dizer que o homem até fez dois ou três filmes mais ou menos (e até os posso nomear: A Lista de Schindler e o Império do Sol). Contudo há coisas que são completamente imperdoáveis, como pegar num conto de K. Dick e fazer o Minority Report ou parir o Inteligência Artificial, ou mesmo fazer com que pessoas de bem gostem tanto de filmes como o Parque Jurássico, ou do Indiana Jones porque dizem que, em criança, os fazia sonhar. Mas isso também faziam os digimon e não vejo ninguém a defendê-los como sendo inapagáveis do seu papel tão relevante na história da cultura cinematográfica. E vocês pensarão que isso não é nada comparado ao Madoff. Não se esqueçam que este homem começou a sua vida sendo um salva-vidas na praia e a instalar sistemas de rega. Quando chegou a rico foi considerado durante muito tempo (até ver a rua através de barras de metal) um génio financeiro por tudo o que caminhava em Wall Street. E este homem começou a roubar dinheiro muito depois de o Spielberg começar a roubar inteligência às pessoas. Ele pode ter levado o mundo a um colapso financeiro, mas o vazio ideológico é muito pior. Percebam isso como um crime também, tal como o é impedir uma criança de ter educação. Já o disse tantas vezes, mas volto a dizer, a perpetuação do preconceito é a perpetuação da estupidez.

Também isto pode ser explicado. O preconceito leva à ideia de que nada mais é preciso ser pensado, que algo já está completamente definido. E será desta forma, a partir desses dogmas, que cada uma das pessoas nas quais eles se implantarem, se tornará, por imposição, numa pessoa limitada em ideias e muito aquém das suas capacidades. E digo isto com a maior das esperanças de fazer com que alguém me perceba e nunca com o objectivo da provocação.

Espero que também desta vez se lembrem de usar uma das coisas que no meu texto digo não pretender fazer ou que não penso, para me criticar a dizer que o faço ou penso. Afinal é assim também que se perpetuam as más ideias cinematográficas, e apenas poderão demonstrar um pouco mais o meu ideário. Sei que dizer isto já é revelar um pouco o que espero, mas penso que nem assim conseguirei evitar que aconteça, de uma maneira ou outra, por escrito ou não.

PS: A culpa não será toda de quem faz os filmes, mas também de quem pode conscientemente dizer que não e quebrar a corrente. Nem que sejam apenas cinquenta pessoas das centenas que vão a um cinema por semana, essa margem já é suficiente para exigir algo de melhor, nem que seja só nessa casa de espetáculos. Perceber que passar determinado filme quer dizer mais cinquenta pessoas no cinema chega para muito. E muito mais se este processo se repetir em todos os cinemas. Aos que podem perceber isto como sendo ligeira ou completamente verdade, digo-vos: vocês são responsáveis por todas as vossas acções, aquilo que vocês querem que se perpetue ou não é da vossa inteira responsabilidade.

O Primeiro Momento

Vou dedicar este primeiro momento a explicar a existência destas publicações. Este blogue segue-se ao projecto que eu tinha num blogue amigo chamado "A Morte da 7ª Arte" (para todos os que quiserem, estes textos encontram-se lá publicados, em A Morte da 7ª Arte ou aqui mesmo, pela ordem em que saíram, mas sem os comentários que os adoçam), e que acabou por diferenças variadamente indefinidas. Os textos da Morte acabaram mesmo por morrer, mas a ideia existente neles, essa, comprometo-me a continuá-la, por a achar relevante e com a esperança de que alguém a ache necessária.